domingo, 8 de setembro de 2013

Quem eram os gigantes e os filhos de Deus de Gênesis 6?


Existem diversas interpretações para a passagem bíblica que você nos propõe:

1ª) Para alguns estudiosos, o trecho de Gênese 6,1-4 poderia ter origem mitológica, ou seja, foi meramente transcrito pelo Autor Sagrado, sem indicação da fonte pagã. Assim fazendo, estaria o hagiógrafo salientando que o mundo ia de mal a pior e precisava da intervenção de Deus, culminando no Dilúvio. 

Os defensores desta interpretação entendem que os "filhos de Deus" seriam originalmente, segundo essa fonte extrabíblica, deuses que se uniram às "filhas dos homens" (mulheres). Os católicos não aceitam esta interpretação mitológica, que entende "deuses" como "filhos de Deus".

2ª) Os cristãos primitivos, fazendo eco a uma tradição rabínica, interpretaram os "filhos de Deus" como anjos que teriam se unido às "filhas dos homens", gerando descendentes gigantes. Isso parece ser referenciado por Judas 1,6 e 2Pedro 2,4, embora tais passagens não abonem esse modo de interpretação.





Porém, muito cedo, a partir do século IV, se levantaram entendimentos contrários de autores cristãos, até porque, sendo seres espirituais, sem corpo material, não teriam com manter cópula carnal com as mulheres.
É certo, porém, que desde a época pré-cristã há pensadores que falam de relações sexuais de demônios com seres humanos. Assim os judeus de Alexandria, entre 250 e 100 a.C, ao traduzirem a Bíblia do hebraico para o grego (tradução alexandrina ou dos LXX), verteram o hebraico bene-eiohim (filhos de Deus) de Gn 6, 2 por ángeloi tou Theou (anjos de Deus) e atribuíram a estes relações sexuais com as filhas dos homens; de tal consórcio teriam nascido homens gigantescos (cf. Gn 6, 1-4). Os escritores judeus Filon de Alexandria (t 44 d.C.) e Flávio José (| 100 d.C.) repetiram a mesma concepção (cf. Filon, De Gigantibus 6ss; De somniis 133ss: Flávio José, Antiquitates 131 § 73), que se tornou freqüente nos apócrifos judeus.

Vários escritores cristãos dos quatro primeiros séculos, por sua vez, professaram a mesma teoria; assim S. Justino (f 165), Taciano (t após 172), Atenágoras (f 177), S. Ireneu (f 202), Clemente de Alexan­dria (f antes de 215), S. Metódio de Olimpo (f 311), S. Cipriano de Cartago (t 258), S. Basílio de Cesaréia (f 379), S. Ambrósio (f 397). Esta tese era devida à falsa tradução apresentada pelos LXX e aceita pelos anti­gos. Favorecia-a o inadequado conceito de espírito que muitos escrito­res dos primeiros séculos professavam: influenciados pelos estóicos, admitiam, sim, que os espíritos tivessem uma corporeidade sutil, a qual explicaria o pretenso relacionamento com mulheres.

Com o tempo, porém, foi-se implantando entre os cristãos a tradu­ção da Vulgata de S. Jerônimo (f 421), que em Gn 6, 2 não falava de anjos, mas simplesmente de filhos de Deus, como o texto hebraico. Além disto, o conceito de espírito foi-se depurando, de modo a não se lhe atribuir corporeidade.

Muito típico da evolução de pensamento é, por exemplo, o livro dos Diálogos, atribuído a S. Gregório de Nazianzo. Este se pergunta como os anjos, sendo incorpóreos, puderam ter consórcio carnal com mulhe­res e gerar gigantes. Acaba julgando absurda e blasfema tal tese. O mes­mo se lê nas obras de S. Cirilo de Alexandria (f 444): afirma que os anjos não têm corpo nem procuram as volúpias da carne; além do quê, obser­va que as Escrituras em Gn 6, 2 falam de filhos de Deus e não de anjos de Deus. Muitos outros testemunhos da transição do pensamento dos doutores da Igreja nos séculos IV/V se encontram no artigo "Démon d'après les Pères", de E. Mangenot, em "Dictionnaire de Théologie Catholique" IV/1, col. 339-384.

Isto explica que na Idade Média os grandes teólogos como S. Boaventura (f 1274), S. Tomás de Aquino (t 1274), Duns Scoto (t 1308), S. Alberto Magno (f 1280)  tenham abandonado por completo a teoria de relações carnais dos anjos com mulheres. Todavia ficou na crença popu­lar a concepção de que os demônios podiam unir-se sexualmente a se­res humanos; por isto algumas publicações da Idade Média (e ainda de épocas posteriores) falavam de demônios ácubos (os que se deitavam por cima) e de súcubos (os que se deitavam por baixo)... Alguns pronunci­amentos de Concílios e de Papas atribuíram largas partes ao demônio na vida dos homens, admitindo mesmo a possibilidade de relações carnais dos mesmos com mulheres. Ampla documentação a propósito acha-se coletada no artigo "Documentos Eclesiásticos sobre Práticas Supersticio­sas e Demoníacas" de Frei Constantino Coser O.F.M., publicado em REB, vol. XVII, março de 1957, pp. 54-88. É certo, porém, que nenhum desses documentos tem a força de definição dogmática; trata-se de orientações dadas para atender à problemática de séculos passados muito propensos a admitir o demônio em todo fenômeno física ou moralmente hediondo.

Em nossos dias, está totalmente fora de cogitação a hipótese de consórcio sexual de anjos maus com seres humanos; a teologia só pode classificar tal crença como falha em suas próprias premissas, visto que supõe corporeidade nos demônios; trata-se, pois, de um produto da fan­tasia, que a piedade popular pôde alimentar, mas que há de ser estrita­mente dissipado.

3ª) A última interpretação - que parece ser a mais correta - vê nos "filhos de Deus" os descendentes de Set (uma população fiel ao Senhor) e, nas "filhas dos homens", os descendentes de Caim (uma população infiel). O resultado dessa união seria os "gigantes" (em hebraico: "nefilim"; em grego: "gigas"), o que pode expressar um elemento da mitologia dos povos pagãos primitivos que existiram nas circunvizinhanças (enaquim, enim, refaim, zonzomin), tidos como de alta estatura e realizadores de diversos monumentos megalíticos. 

Aliás, provêm dos primitivos povos ugaríticos textos que apresentam gigantes mitológicos (os "refaim") como heróis míticos e fundadores de dinastias.



Ora, diversas passagens do Antigo Testamento demonstram que os hebreus acreditavam na existência dos povos de altíssima estatura, ao mesmo tempo fortes, soberbos e revoltados contra Deus: Números 13,3; Deuteronômio 2,20-21; 3,11; 1Samuel 17,4; 1Crônicas 11,23; etc. Também encontramos referências a esses  "gigantes" nos livros deuterocanônicos (que vocês, protestantes, costumam a chamar de "apócrifos"): Eclesiástico 16,7; Judite 16,6 e Sabedoria 14,6.

Para que você tenha uma idéia da altíssima estatura destes "gigantes", em Deuteronômio 3,11 diz-se Og, um remanescente dos "refaim", tinha uma cama de ferro que media 9 côvados de comprimento, o que equivale a 4 metros!!!

Esta última interpretação é também favorecida pelo fato de o antiquíssimo tratado rabínico Bereshitrabba 26,7 afirmar que "refaim" é o nome primitivo dado ao "nefilim", heróis primitivos, nascidos de mulheres engravidadas pelos "filhos dos deuses" (observe o traço mitológico!!!). Diante disto, é bem possível que os israelitas tenham preferido usar a palavra "nefilim" para designar os "refaim" da mitologia pagã. 

Tal substituição de palavras, entretanto, não é de se estranhar. Em 1Crônicas 8,33, por exemplo, vemos que Saul gerou Esbaal (o que significa "homem de Baal"); porém, como este nome tinha conotação pagã, vemos o autor de 1Samuel 14,49 vertê-lo para Isvi (ou seja, "homem de Javé")!

Em resumo: a interpretação mais provável para Gênese 6,1-4 é que da união entre o povo descendente de Set (=filhos de Deus) e o povo descendente de Caim (=filhas dos homens) surgiu o povo dos "refaim", que tinha como principal característica sua alta estatura, decorrente talvez de algum problema de ordem genética. E da mesma forma como os bons costumam a se corromper andando na companhia dos maus, desta união resultou a crescente corrupção da espécie humana. É assim que os Padres e Escritores eclesiásticos têm entendido esse difícil texto desde o séc. IV.

Esperamos ter colaborado e mais uma vez agradecemos suas dóceis palavras!

[]s,
Que Deus te abençoe!

Carlos Nabeto

Fontes:

2 comentários:

  1. Muito boa explicação, mas se os anjos não tem forma corporea e não podem assumir a mesma, como explicar a aparição deles a ló em Sodoma antes da destruição da cidade? Gn 19,1-29

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    1. Olá Cristiano.

      Os anjos são seres espirituais mas embora não tenham corpos físicos próprios, como nós, podem se manifestar de modo que possamos enxergar.

      Por exemplo nas teofanias do Antigo Testamento.

      "O anjo do Senhor apareceu-lhe numa chama do meio a uma sarça. Moisés olhava: a sarça ardia, mas não se consumia.
      "Vou me aproximar, disse ele consigo, para contemplar esse extraordinário espetáculo, e saber porque a sarça não se consome."
      Vendo o Senhor que ele se aproximou para ver, chamou-o do meio da sarça: "Moisés, Moisés!" "Eis-me aqui!" respondeu ele.
      E Deus: "Não te aproximes daqui. Tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é uma terra santa.
      Eu sou, ajuntou ele, o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó". Moisés escondeu o rosto, e não ousava olhar para Deus."

      Êxodo 3:2-6

      Se tratam de manifestações especificas, normalmente para levar alguma mensagem ao homem. Não quer dizer que as formas que se manifestem, sejam sues corpos reais, tão pouco que sejam formas que permitam reprodução, pois os anjos não tem sexo:

      "Portanto, na ressurreição, de qual dos sete será a mulher, visto que todos a possuíram?
      Jesus, porém, respondendo, disse-lhes: Errais, não conhecendo as Escrituras, nem o poder de Deus.
      Porque na ressurreição nem casam nem são dados em casamento; mas serão como os anjos de Deus no céu."

      Mateus 22:28-30


      A Paz de Cristo

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